Ah, esses dias excepcionais em que você fotografa o tempo todo

  • Texto e fotos: Claudia – Canon 7D e lente 100-400
  • Guia: o incrível Thiago Carneiro, residente em Campos do Jordão. Contato: Tel:12 9773 2654, carneiroa3@gmail.com , skype: thiagocarneiro13
  • Vimos ou ouvimos mais de 100 espécies, fotografei 53, 20 espécies com fotos boas, 4 lifers

Já tinha ouvido falar que a primavera é a melhor época do ano para passarinhar, mas até agora havia aproveitado pouco. Enquanto trabalhava na consultoria, setembro era um mês para trabalhar muito, de ouvir o canto do sabiá-laranjeira de madrugada, e outubro eram férias na África do Sul. Essa passarinhada em Campos do Jordão foi para me impressionar mesmo: muitas aves no primeiro dia, de em alguns momentos não saber o que fotografar. No segundo, silêncio na mata, em compensação olhos mais atentos para qualquer movimento, e assim vimos o cabecinha-castanha e a choquinha-carijó, lifers para Campos do Jordão. E ver o gavião-pega-macaco pousar na árvore da frente, atraído pelo playback. Pra se sentir em estado de graça.

Decidi ir pra Campos, sozinha, de uma hora pra outra. O Rafa Fortes não podia, então entrei em contato com o Thiago Carneiro, que pra minha sorte estava livre. No dia 4/09 pela manhã, às 6h30, fomos para a estrada do Pico do Imbiri, tempo nublado, o Climatempo dava até previsão de chuva pela manhã. Silêncio na mata. Muitas cigarras-bambu, o bico-grosso, sanhaçus-frade, mas tudo no alto e escuro. Havíamos descido uma encosta íngreme em busca da tovaca-de-rabo-vermelho, uma ave arredia, fácil de ouvir o canto, mas difícil fotografar. Cantou longe e não se aproximou. Voltamos para a estrada. Umas 9h e pouco o show começou.

O beija-flor-de-topete pousou. Logo em seguida Thiago chamou o tapaculo-preto e o bicho posou no limpo e empoleirado, fiquei sabendo que o apelido do bicho é “Thiaguinho”, de tão bem que ele atende ao chamado do Thiago. Não esperava ver o tapaculo-preto no limpo. De repente a tovaca canta no lado da estrada, o Thiago tocou o playback, ela respondeu, cantava tão alto e próxima, mas embrenhada. Olhando para baixo, de repente vejo-a de cima, as costas marrons, detalhes brancos, caminhando naqueles passos lentos e tranquilos. Já estava feliz por ter ouvido o canto tão próximo e conseguir vê-la de passagem, mas aí ela resolve empoleirar a menos de 5m da gente. Esta foto não tem crop. Cantou por 4 minutos, e eu pensando que além da musculação devia fazer ioga para conseguir sustentar posições difíceis. Acho que ela só saiu porque tentei achar uma posição com menos galhos. Queria ter conseguido uma foto melhor, mas eram tantas folhas que não seria possível usar flash (além do risco de assustar a ave), e tive que colocar no manual, porque no automático não era possível focar. ISO 800, 1/30.

Arapaçu-escamado-do-sul, bico-grosso, arapaçu-verde. Um bandinho de peito-pinhões! Só tinha visto uma vez, de longe e no alto, e de repente vi um bandinho. Casal de surucuá-variado no alto, e eu tentando aplicar o Lado B e compor alguma coisa com o cenário de troncos e folhas, a linda choquinha-de-asa-ferrugem, o caneleirinho-de-chapéu-preto, um limpa-folha-de-testa-baia pousou muito perto, de repente os peito-pinhões de novo, se alimentando de flores amarelas, uma das coisas que eu mais queria ver, é claro que tremi e perdi uma das melhores fotos. Tinha ouvido o Thiago me chamar, mas estava concentrada nos peito-pinhões. Depois soube que era um caneleirinho-de-chapéu-preto bem no baixo, algo raro. Abre-asa-de-cabeça-cinza, caneleiro, choquinha-da-serra gritando, pomba-amargosa, lifer pro Thiago, outra ave que eu descobri que atende ao playback.

Quando a mata parecia ter aquietado, decidimos ir para o Horto procurar o canário-do-brejo. Notícia boa: mudou a gestão! Saiu a gestora que instruía os seguranças do parque a abordar as pessoas com câmeras grandes e dizer que não podiam fotografar. Na torcida para que o novo gestor seja uma pessoa mais esclarecida, capaz de apoiar a divulgação da natureza de Campos do Jordão.

No caminho para a trilha do Sapucaia, encontramos a Juliana Gonçalves, esposa do Thiago. Ela trabalha no parque, e ganhou recentemente do irmão uma Canon T3i com lente 100-400. O Thiago disse que agora ela só quer saber de passarinhar. Fica a dica para quem precisa envolver o parceiro no hobby: arrume uma câmera legal, e dificilmente a pessoa não vai se apaixonar.

Não achamos o canário-do-brejo no descampado. Mas no caminho vimos o pica-pau-rei mais lindo e mais próximo da minha vida, e tivemos um outro show, de tangarás voando ao nosso redor, pousando próximos, cantando muito.

Saímos do Horto e decidimos ir atrás da saudade, Tijuca atra, outra ave mítica pra mim, praticamente um karma que eu já havia tentado fotografar em mais de 15 ocasiões. Era meu último cotingideo da região Sudeste (não espero ver a saudade-de-asa-cinza, ameaçado de extinção, e com menos de 10 fotos no Wikiaves, nem o tietê-de-coroa, sem registro no Wikiaves e possivelmente extinto).

Eu só a tinha visto a saudade de relance uma vez, com o Rafa, mas ela não pousou, só passou. Dessa vez, ela resolveu me compensar por todas as vezes em que tentei vê-la, e nada. Ela apareceu na encosta, consegui uma foto de registro, mas aí o Thiago saiu andando pela estrada e topou com o bicho pousado na beira. A Tijuca voou, o coração do Thiago quase se partiu, mas ele tocou o playback e a ave voltou para perto, pousou em cima da gente, nem dava para fotografar em 400mm, tive que baixar o zoom. Tentamos nos afastar devagar, para melhorar o cenário e o fundo, mas ela voou. Espetacular de qualquer forma.

Outro momento muito emocionante: enquanto esperávamos pela Tijuca atra, um bando de taperuçus-de-coleira-branca apareceu, e alguns resolveram voar baixo. Estávamos no topo de uma encosta, e foi um espetáculo. Passaram a menos de 5m da altura da estrada, fazendo barulho de um minijato, nunca imaginei vê-los assim, e não, nem tentei fotografar, rápidos demais, e um espetáculo bonito pra se ver com os olhos. Eles são enormes! A impressão era de uns 30cm de envergadura.

Resolvemos esperar o dia acabar por lá mesmo, e procurar os noturnos na estrada. O bacurau-tesoura-gigante. Você o vê pousado, o macho já tem um rabão de impressionar. Mas quando ele voa iluminado pela lanterna, é de parar o coração. O céu escuro, a lanterna iluminando as penas claras do lado de baixo do bicho, não é uma ave, é um ser encantado da floresta. Outra ave linda demais. O Thiago até falou “tenta fotografar”, me senti o Marcelo Barreiros, nem respondi, só pensava “não consigo, esse bacurau é muito lindo, só quero olhar”.

Foi um dia tão intenso e emocionante que nem sabíamos o que esperar para o dia seguinte.

No segundo dia de passarinhada o céu amanheceu limpo. Mas ventava, e a mata estava quieta. Onde estavam os bandos mistos? Os peito-pinhões? O vento tinha levado? Só queria uma outra chance com eles, oportunidade de vê-los de novo nas lindas florzinhas silvestres.

Poucas aves. O tapaculo-preto apareceu de novo, mas não empoleirou, só olhou curioso. Como estávamos atentos a qualquer movimento, de repente vimos um pequeno embrenhado, que talvez no dia anterior teria sido ignorado. Naquele dia não foi, era o cabecinha-castanha! Uma ave linda, que ainda não tinha sido registrado em Campos do Jordão. Não atendeu ao playback, não desceu das alturas, mas se deixou registrar no alto e no escuro.

Percorremos um pedaço da trilha para o Pico do Imbiri, o pedaço mais íngreme. Nos espaços mais abertos, o bico-de-veludo, andorinha-serradora, sanhaçu-frade, tucão, maria-preta-de-bico-azulado. De repente o Thiago ouviu a choquinha-carijó, outro lifer para a cidade. Ele havia comentado que o Marcos Eugênio tinha falado que a escutou na trilha, e estava certo. Enquanto tentávamos atrair a choquinha, ouvimos o grito do gavião-pega-macaco. Olhei entre as árvores, vi ele passar baixo, próximo de onde estávamos. O Thiago tocou o playback, o bicho havia desaparecido da vista, e de repente ressurge, pousa numa árvore próxima, eu nem acreditava. Estava totalmente na contraluz, mas nunca tinha imaginado que veria essa ave posando pousada, ainda mais atraída pelo playback. Já tinha visto pousar na Folha Seca (sem playback), mas foi um lampejo. Dessa vez ele ficou parado durante alguns segundos, fiz algumas fotos e tentei passar dele para mudar a luz, mas aí já foi muito desaforo, ele foi embora. Desistimos da choquinha, ficamos com minha foto de registro embrenhada com a cabeça para o outro lado.

Já era hora do almoço, fomos espiar os comedouros da pousada Recanto das Araucárias, que tem sido o local onde os passarinheiros têm se hospedado. E o Thiago também queria que eu conhecesse o dono, o Eurico, um japonês muito simpático. Um local simples, com diária barata, desconto para pagamento em dinheiro, café da manhã cedo (basta combinar antes), comedouro no quintal onde até já apareceu o sanhaçu-de-fogo. O Eurico trata bem todo mundo, e está orgulhoso de ver como a observação de aves vai contagiando as pessoas, até os funcionários da pousada. Um deles comprou uma câmera, as moças da copa agora cuidam dos comedouros e bebedouros com todo carinho.

Saímos de lá, fomos para um lago, mas o sol estava alto, calor, a saracura-sanã apareceu bonita, cantou um sabiá-do-banhado, mas longe. Fomos para a estrada da Gruta dos Crioulos. Um bandinho de saíras-lagarta, o caneleirinho-de-chapéu-preto, mas todos no alto. Voltamos para a estrada do Pico do Imbiri, tudo muito quieto, aves levadas pelo vento.

O Thiago tinha visto que as cerejeiras ainda estavam floridas no Parque das Cerejeiras. Falei que era lá onde passaríamos o final da tarde. Cerejeiras floridas cheias de beija-flores: beija-flores-de-papo-branco, beija-flor-de-peito-azul, beija-flor-de-banda-branca, beija-flor-rubi, um de-topete avistado ao longe, mas não localizado de novo. Quetes, tico-ticos, saís-azuis, todos se alimentando das flores. Nos divertimos muito tentando registrar os beija-flores em voo, e depois ainda tivemos um show de um saí-azul macho. O Thiago não carrega a câmera, anda só com o binóculo e o playback, mas nesse momento falei para ele pegar, na verdade tive que insistir. Por fim ele foi pegar a câmera no carro, e depois vi que ele estava contente em fotografar os beija-flores, e fez uma foto maravilhosa do saí-azul, me disse até que era a foto mais bonita que já tinha feito.

No dia seguinte eu tinha que ir embora na hora do almoço. Fomos espiar a estrada do Pico do Imbiri, mas continuava no silêncio, e no Parque das Cerejeiras a atividade maior das aves ainda não tinha começado, provavelmente era no período da tarde, mas conseguimos algumas fotos. Também decidi fazer algo diferente: nesse dia almoçamos, uma ótima truta no Mercado Municipal, no Pesquinha. Nos dias anteriores tinha levado lanches para a trilha e não paramos.

Falei de várias aves e situações que pra mim, até então, eram lendas, seres míticos da floresta. Mas ainda não falei do maior ser mítico da passarinhada: o próprio Thiago Carneiro. Nunca tinha conversado com ele, só trocado alguns e-mails. Não sei se ele lê pensamentos, ou blogs, mas de repente me pergunta se eu conheço o Joseph Cornell. E fico sabendo que o Thiago conhece a metodologia do Joseph Cornell, trabalha para uma instituição, é professor em expedições, gosta de orientar jovens da periferia de São Paulo. Eles fazem expedições para lugares no meio da mata onde vão aprender sobre cooperação, trabalho em equipe, técnicas de diálogo, feedback, organização, disciplina. E quando não está guiando, nem trabalhando nas expedições, o Thiago é carpinteiro, tem uma empresinha com o pai dele.

Se não bastasse saber que ele trabalhava com a metodologia do Joseph Cornell, alguém que conheci recentemente, graças à Renata Barreiros, também me falou sobre energia. “Quando queremos muito ver uma ave, é comum ela não aparecer porque é como se projetássemos uma energia de caçador sobre ela”. Eu acredito na influência da nossa energia e pensamentos, mas não esperava ouvir isso de outra pessoa, ainda mais num primeiro encontro.

E como concordávamos sobre as delícias de observar as aves, e não ficar obcecado por uma lista, passarinhamos despreocupados, agradecendo a cada ave por se mostrar e posar, sem a necessidade de ir atrás de lifers ou aves cobiçadas da região. E mesmo assim, ou talvez por isso, fiz 4 lifers (algo difícil quando se tem mais de 700 espécies e sem ir pra bioma novo), e vimos os seres e situações míticas que pra mim eram lances de muita sorte, e que nunca imaginei ver de uma vez numa passarinhada de 2 dias.

Ver e fotografar todas essas aves foi muito emocionante, mas talvez a parte de que eu mais gostei foi conhecer o Thiago Carneiro, essa pessoa tranquila, apaixonada pela natureza, e cheio de ideias e disposição para divulgar o birdwatching em Campos do Jordão. Vou ajudar em tudo que puder. Obrigada, Thiago!