Meus dias solitários e passarinheiros no extremo norte do Kruger, out/13

Talvez em parte por influência de um breve diálogo com meu amigo Robson Bento, eu queria o silêncio. Desde que deixei o Cris e o Daniel no aeroporto de Phalaborwa no domingo às 11h, tirando algumas noites em que Ella Fitzgerald, Frank Sinatra, Nina Simone e Chico Buarque me fizeram companhia nos chalés opressivos – mas com ar condicionado de Punda Maria, e os momentos de conversa com o Cris pelo celular, o resto do tempo pude experimentar um silêncio e isolamento monásticos.

O pneu furado na estrada deserta e sem sinal de celular, o italiano que não sabia inglês, destruir o pneu por rodar 5km com ele murcho até a estrada principal, decidir passar a última manhã a pé dentro do campo já que estava sem pneu extra, ter a honra de ver os Vervet Monkeys jogando capoeira, esse foi o ápice das coincidências, mas em outros momentos eu percebia um timing perfeito, mesmo que parecesse algo ruim a princípio. Como o atraso de 2 horas do voo até Phalaborwa, errar o caminho para chegar na R40, ter que dormir em Letaba mas assim topar com dois leopardos nos primeiros 20 minutos dentro do parque, mais um terceiro na manhã seguinte a caminho do campo “certo”. Pensar “acho que vou virar à esquerda”, e chegar justo no momento em que a African Fish Eagle está alçando voo. Decidir “agora vou fotografar bee-eaters”, parar para fotografar um pequenino, e de repente olho um pouco mais pra cima e do outro lado do rio tem um leopardo (o sexto da viagem) caminhando no improvável horário das 9h30. Foi uma viagem cheia de coincidências. Segue o relato detalhado de cada dia dessa semana de aventuras.

Domingo, 20, e segunda-feira, 21/10 – de Shigwedzi a Punda Maria

Depois que deixei o Cris e o Dani, minha primeira noite seria em Mopani, mas decidi mudar para Shingwedzi. Eu estava a 140km de Shing, estimava umas 4h30 de estrada (o limite de velocidade é 50km, mas você sempre para para ver algo), e eu não queria chegar tarde, tinha medo de ficar com sono na estrada.

Toquei direto até Mopani, fui até a recepção e pedi para mudar para Shingwedzi. O homem que me atendeu perguntou do meu marido, e não era cantada, era um tom de voz em que a única resposta certa era eu ter um marido e uma explicação boa de por que eu estava viajando sozinha. Felizmente eu tinha, mas fiquei pensando que as solteiras deveriam mentir. Mulher viajando sozinha só é visto com naturalidade em poucos lugares do mundo.

Alguns quilômetros depois de Mopani, vi uma família de girafas, com um jovem muito simpático, os cornos com aqueles tufinhos, que fazem parecer chuquinhas. Mais pra frente, parei para fotografar uma águia no ninho, provavelmente Tawny Eagle. Nunca tinha visto um ninho com folhas, só com gravetos. Mais alguns quilômetros, uma Brown Snake Eagle.

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Em frente ao buraco d´água N´wambu, elefante grande no meio da estrada. Desacelerei, parei o carro a uma distância respeitosa. Não se moveu. Tinha pedaços da pele molhados, e brincava de mexer com a tromba em alguns capins secos, numa pose de quem está matando o tempo. Esperei alguns minutos. Decidi tentar avançar devagar. Ele parou de mexer no capim, olhou diretamente pra mim e trouxe a tromba para o asfalto, como quem repousa um taco de beisebol. Entendi. Dei ré e voltei à distância respeitosa. À minha esquerda, vários elefantes bebendo direto do reservatório, como só eles conseguem. Um grupo se desloca e cruza a estrada, só então entendi: o grandalhão no meio da pista era o tradicional guarda-de-trânsito, que várias manadas têm, mas nunca tinha topado com um que já ficava interditando a estrada antes da manada começar a travessia. Eu tinha pressa de chegar em Shing, mas na verdade sempre gosto de ver essas cenas. Elefantes são animais muito carinhosos e família, é lindo como um grandalhão interdita a estrada enquanto os menores passam apressados.

Mais alguns quilômetros, avistei duas jovens Lesser Striped Swallow. Eu teria ficado um bom tempo observando-as, se não fosse a preocupação em não chegar tarde em Shing. Tirei algumas fotos e, quando estava voltando pra estrada, vi chegar o adulto e alimentá-las. Meu coração doeu, dei ré, voltei a estacionar na frente delas e fiquei uns 10 minutos esperando, mas o adulto não voltou. Ah, pensar que eu poderia ter imagens do adulto dando comida…

Cheguei em Shingwedzi antes das 16h. Fiz o check in, descobri que o restaurante estava fechado – enchentes pesadas neste ano, o campo passou meses interditado, mas felizmente a loja estava aberta. Comprei um bife, um saco de batata-frita, uma cerveja, e meu jantar foi esse bife quase queimado (porque me distraí vendo as fotos), com cenouras pretas, a batata frita e a cerveja. Antes do jantar dei uma volta pelo campo, apenas um Cardinal Woodpecker bem próximo, um senhor que me falou hi e perguntou se eu era vietnamita.

Na manhã seguinte saí às 6h10 para a S50. Foi uma tristeza descobrir que a saída de traz de Shing e, principalmente, as estradas ao redor, onde em 2010 vimos um casal de Tawny Eagle namorando, estavam interditadas, provavelmente as estradas foram destruídas pela enchente. Dei a volta pela S134. Fotografei Tick-knee, African Fish Eagle, Arrow-marked Babbler, o maravilhoso African Paradise Flycatcher – achei que seria o primeiro da temporada, mas infelizmente foi o único que consegui registrar. Vi umas quatro outras vezes, mas sempre em voo: por causa do rabão, esse bicho em voo parece uma fitinha marrom-alaranjada-absurda sacolejando no ar.

Voltei pela S50 e segui a caminho de Punda Maria, pela querida S56, uma estrada cênica que margeia um rio seco com árvores altas, famosa por avistamentos de leopardos. Long-billed Crombec, Blue Waxbill, jovens nyalas machos ensaiando uma lutinha, White-fronted Bee-eater, Common Greenshawk, provavelmente Red-billed Firefinch (apesar dos meus não terem o anel amarelo em volta dos olhos), Black-backed Puffback, Natal e Crested Francolins, White-browed Scrub-Robin, e algum ilustre desconhecido. Ah, foi nessa estrada que vi o sexto leopardo da viagem. Foi só por alguns segundos, e esqueci do Bee-eater, mas é sempre uma sensação de muito orgulho quando um bicho desses cruza nosso caminho.

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Cheguei em Punda Maria um pouco antes do meio-dia. Fiz o check in, almocei no restaurante – o melhor do Kruger. O cozinheiro faz as coisas no capricho, imagine que minha bisteca de porco tinha até um raminho de alecrim, você nunca verá isso em outros campos. Fui dar uma volta pela S99, a estrada circular em volta do campo. Nyalas, inclusive um jovem e um adulto carinhosos. African Hoopoe comendo algum bichinho muito interessante que ele achou enfiado numa fresta de um tronco. Os insetos mais interessantes que eu vi na viagem estavam sempre em situações desfavoráveis, a poucos segundos de seu fim. Um bom grupo de Yellow-billed Oxpecker montados num búfalo com cara de conformado. Kurrichane Trush. E fim do dia.

Terça-feira, 22/10, no labirinto de Pafuri

A região de Pafuri é o extremo Norte do Kruger. Um lugar com árvores altas, e até mesmo uma floresta de Fever Threes. Um cenário muito diferente e, ainda que seja apenas um pedacinho do Kruger, gente como o Nigel Dennis diz que ninguém viu o Kruger “real” até visitar Pafuri. Nigel é um fotógrafo profissional que publicou “Where to watch game in the Kruger National Park”, um livretinho com mais de 10 anos, mas que sempre carregamos conosco nas viagens. Infelizmente ele tem um site horrível, nem vale a pena olhar.

Nós concordamos com ele, pra gente Pafuri é um lugar encantado. É onde em 2007 vimos um grupo de elefantes tomando banho numa parte funda de um rio, e brincando como crianças. A paisagem toda é muito bonita e, ainda que a gente nunca tenha visto, é o lugar onde há chances de ver a Pel’s Fishing Owl e o Narina Trogon.

Saí às 6h com o dia fechado e dirigi os 60km até Pafuri. Achei que ia melhorar, mas foi daqueles dias em que não amanheceu. Com o dia escuro, decidi tocar direto até Pafuri, e torcer para que o céu abrisse um pouco quando chegasse lá. Famílias de Nyalas. Muitas Barn Swallow no meio da estrada de asfalto, e pousadas em arbustos na beirada. Os incríveis baobás. White-browed Scrub Robin, um amarelinho que não consegui identificar, White-bellied Sunbird, algum Cisticola, Tropical Boubou, Mosque Swallow (lifer e incomum), Common Sandpiper (lifer), White-crowned Lapwing – que deve morar na Crook’s Corner, Speckled Mousebird, Yellow-fronted Canary, Kurrichane Thrush, Emerald-spotted Wood-Dove, Blue Waxbill, Egyptian Goose (o tempo todo. Não consegui ver outro anatídeo, só dava ele. Provavelmente comeu todos os outros), Red-billed Quelea, African Fish Eagle (dois casais pousados na areia, ao longe, cantando muito. E de repente sai um crocodilo da água e tenta pegar uma das águias. Claro que não conseguiu, a águia estava longe da água, não foi um ataque de surpresa, mas me fez pensar se o crocodilo realmente achou que ia conseguir, ou se ele só queria dormir em paz e quis acabar com a cantoria), Broad-billed Roller, White-fronted Bee-eater, Lesser-masked Weaver, Klaa’s Cucko (fêmea. Antes só tinha visto o macho), White-bellied Sunbird, Orange-brested Bush-Shrike, Golden-tailed Woodpecker, Long-billed Crombec.

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Essa é a lista de aves desse dia, nenhuma foto muito boa, faltava luz. Alguns trechos com água empoçada, num deles era tanta água que eu não conseguia ver o final da “poça”. Meu carro não era 4×4 e eu estava sozinha. O tempo todo lembrava do que o Cris me falou quando nos despedimos no aeroporto “Mantenha-se longe de problemas”, e eu pensava “parece raso, mas se eu atolar o carro aqui, não estou me mantendo longe de problemas”.

A chuva aumentou e eu comecei a ficar preocupada com as condições das estradas, mas pensava “o pessoal da África do Sul é super-cuidadoso, eles não deixariam a gente circular por essas estradas se houvesse risco de atolar”. Cheguei num ponto em que a estrada estava fechada. Fiquei surpresa, chateada, a ponto de descer do carro (o que é proibido) para tentar abaixar o cordão de metal para eu passar, e colocaria de volta. Eu estava perto do campo de piquenique, o lugar onde eu queria chegar, e não fazia sentido aquele cruzamento estar fechado. Mas a corrente era pesada demais, não consegui levantar, tive que voltar pro carro e dar a volta. Quando cheguei no outro ponto, a passagem também estava fechada, mas felizmente havia um funcionário do parque mexendo com algum maquinário de aplainar estradas de terra, ele me viu, e abriu a passagem pra mim. Só então entendi: o trecho em que eu estava andando foi considerado perigoso para os carros, e eles fecharam, mas não sabiam que eu estava lá.

Num outro trecho tive o mesmo problema: a passagem aberta na ida, mas na hora de voltar, estava fechada. Acho que como a chuva aumentou, o sol não saiu para secar as estradas, eles decidiram fechar. Na quarta vez em que tive que voltar um trecho porque a passagem estava fechada eu estava começando a ficar nervosa, me sentindo um ratinho no labirinto, mas por fim cheguei na estrada principal de asfalto e pude voltar para Punda Maria.

Ficar presa me rendeu algumas fotos de que gostei bastante: um filhote pequeno de Nyala, deitado e olhando pra câmera, enquanto a mãe o lambe. Estavam do lado dos babuínos, todos agrupados sob uma árvore durante uma chuva mais forte. Os babuínos formavam um grupo muito interessante, numa das fotos um deles abriu um sorriso grande – não sei como explicar isso, a não ser dizer que era um sorriso. E havia uma mãe com um filhote pequeno, ela o abraçava apertado, talvez para proteger da chuva e do frio, talvez com pena – era um filhote com uma deformidade na face, entre os olhos, como se tivesse levado uma unhada profunda. Dois babuínos na forquilha de troncos grossos, bem juntinhos, se protegendo do frio e da chuva. Um deles de olhos fechados, o outro com olhos de quem sonha.

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Saí de Pafuri depois das 16h, nesse dia não fotografei mais. A chuva continuou, e eu estava exausta.

Quarta-feira, 23 – vários passarinhos, e um truque de mágica

A quarta amanheceu fechada e com chuva. Eu queria muito ir pra Pafuri, o local com mais chances de ver aves diferentes, mas pensei que provavelmente as estradas estariam interditadas, então decidi ficar nos arredores de Punda Maria.

Fui para a S99. Violet-backed Stariling de longe e de costas. Groundscraper Thrush, uma ave bela, mas sem luz. Terrestrial Brownbul, também sem luz mas numa composição bonita com uma flor, fundo branco a lá Andrew Zuckerman, White-browed Scrubed-robin – onipresente, Brown-crowned Tchagra, Rattling Cisticola (outro onipresente), Kurrichane Thrush, Crowned Lapwing,

E então

Parei para ver algumas Barn Swallows pousadas num campo, embaixo de uma árvore. Pensando em fotografá-las no chão, começando a ajustar a câmera, quando ouço o som de algo derrapando. Tirei os olhos da câmera, olhei pra frente, uma Tawny Eagle ainda com uma das patas meio inclinada pela derrapagem. Nos encaramos por dois segundos e então ela voou.

Confesso: primeiro pensei “caramba, que incrível ela ter pousado aqui”. Daí “opa”, e fui olhar o que eu tinha no meu visor dela em voo e de costas. Tinha algo na garra. Uma ex-andorinha, é claro, qual o outro motivo dela ter pousado? Eu tinha visto os lados para onde ela foi, e fui atrás. Consegui registrar por um minuto ela depenando o bichinho, e então ela voou. Foi muito emocionante, pensava até que era a primeira caçada de verdade que eu tinha visto, mas depois tive que reconhecer que seria uma caçada se eu tivesse visto o bicho tocaiar e atacar, o que não foi o caso. O que eu vi foi um truque de mágica: havia um campo com andorinhas, e de repente se materializou uma águia.

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A estrada estava vazia, eu cantarolava mentalmente “vocês, que não quiseram sair do chalé só porque estava escuro e chovendo, não sabem o que estão perdendo…”

Numa curva, numa árvore bonita de troncos grossos e escuros, uma ave que eu nunca tinha visto. Registrei, comemorei mais um lifer, mas depois descobri que seria melhor se continuasse sem ver. Era uma Common Myna (Acridotheres tristis), bonita, mas invasora da Índia, abundante em cidades. Não deveria estar ali. No meu guia de aves da África do Sul, de 2002, o mapa de distribuição ainda não chegava em Punda Maria. As coisas tinham mudado.

Lilac-breasted Roller, Broad-billed Roller, Yellow-breasted Apalis, Purple Roller. A região de Punda também tem registro de uma espécie incomum de Roller, o Racket-tailed Roller. Mas além de incomum, o livro diz que ele não pousa em lugares abertos, e sim no alto das árvores. Sempre procuro, mas nunca vi.

Topei com um ninho de algum tecelão. Esses ninhos bolinha, que são uma obra de arte. Queria saber qual tecelão era. Ninho novo, bonito, mas nenhum sinal da ave. Achei que era um bom lugar para desligar o carro, tomar o café da manhã, quem sabe ver o autor do ninho. Eram quase 8h. Começam a aparecer carros. Não me conformo como o pessoal não sai cedo num lugar como esse. Eu estou lá, comendo meu sanduíche, com a cara mais feliz do mundo, então não me admira que o carro que emparelhou com o meu pergunta se eu vi alguma coisa, se eu vi um leopardo. Nesses casos às vezes respondo “just birds”, dessa vez só falei “no” – e nem pensei em contar que nos últimos dias eu tinha visto seis leopardos. Elas se vão, eu dou broncas mentais “vocês estão em Punda Maria, um dos melhores lugares para ver aves, por que raios vocês estão atrás de um leopardo? Se querem ver os felinos vão pra Satara, pro sul. Mas já que estão aqui, por que não aproveitam o que esse lugar tem de mais especial?”

Um Weaver, talvez o Village Weaver passa perto do ninho mas não entra. Prossigo na estrada. Grupo de Nyalas se alimentando. Belo European Bee-eater sob a chuva fina, rende várias fotos. Também havia um Little Bee-eater, mas em posição pior. Subo o ISO para tentar pegá-lo em voo, está indo e voltando pro mesmo galho. Nada que preste, nem a foto dele pousado.

Mais um Brown-crowned Tchagra. Uma família de Orange-breasted Bush-Shrike. Dois adultos, dois jovens. O adulto cantou muito, fico lamentando estar sem gravador. O canto é lindo. Cuco, Jacobin Cuckoo, mais comum do que o Levaillant’s (que já havíamos visto em outra viagem), mas lifer. Brown-Snake Eagle, Nyalas, o cisticola de sempre, um Pied Crow, já bem perto do campo.

Cheguei de volta a Punda umas 11h30, pus a lente macro e fui ver o que encontrava. Nada de insetos. Mas uma centopeia e uma teia de aranha coalhada de gotas de chuva, linda como uma renda. Comi alguma coisa no meu chalé e voltei a sair às 14h.

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Na encosta das montanhas, zebras, kudus. As zebras sempre olham para o carro por alguns segundos, aquele ar de perplexidade. European Bee-eater num galho bonito, de perto, luz bonita, minha melhor foto dele, mas nada comparado à fotona que o Cris pegou em 2007 de um alçando voo, asas abertas, olhando pra câmera e perfeitamente em foco. Barn Swallow em galho bom. Eu não conseguia olhar para essas pequenas sem pensar “se cuidem, não pousem em lugares tão expostos, tem gavião por aí” – ainda que eu adore as aves de rapina, e é sempre uma emoção ver uma caçada ou o final da caçada, não significa que a gente não tenha coração. Crested Francolin e, por fim, uma jovem Martial Eagle pousada, parecida com a que fizemos a festa no Kgalagadi em 2011. Mas não estava tão próxima, sem luz, e sem ação. 17h, e encerrei o dia.

Quinta-feira, 24 – Monstros e sangue

O dia não amanheceu bonito, mas parecia ter menos chuva, então decidi seguir pra Pafuri de novo. No caminho, vejo um bicho grande no céu pousar numa árvore um pouco afastada da estrada. Parei pra olhar. Achei que era uma águia chegando no ninho. Tirando fotos e olhando no visor, de repente as imagens mostram outra águia. Ou não vi chegar, ou ela já estava lá. As duas águias tinham cores diferentes e, deixa eu explicar, teve uma foto em que uma delas, a grandalhona, está fazendo uma pose para afastar  a outra. Ela ergue um pouco as asas, como quem ergue os ombros, e o afasta com a asa. A menor vai embora. Mais umas fotos (estava muito longe, não dava para entender a cena a olho nu, só olhando no visor da câmera), e vejo que essa águia grande que afugentou a outra está comendo um filhote.

Sou obrigada a confessar: não segui a lâmina de Occam. Por causa da foto da águia grande afastando a menor, e da outra cena dela comendo um filhote, pensei “que droga de mundo cruel. Essa águia grande achou o ninho da Tawny Eagle e foi predar o ninho, mesmo com o adulto lá. E ela é tão grande que o adulto não conseguiu fazer nada, teve que apenas observar enquanto o monstro comia seus filhotes no próprio ninho”. Fiquei triste até chegar em Pafuri, onde minhas primeiras fotos foram de um casal de White-fronted Bee-eater, bem juntinhos e carinhosos. Pra mim, mais uma daquelas coincidências, alguém tentando me consolar, me fazer pensar que também existe amor e carinho, e não só a lei do mais forte.

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Um pouco mais pra frente, ouço um lamento e penso “isso é um Trumpeter Hornbill”. Eu nunca tinha ouvido o som, mas imaginei que só podia ser, lembrava muito o som de um instrumento musical meio desafinado. Olhei pra cima, lá estava ele. Nesse dia tive três avistamentos, inclusive um relativamente perto, apesar de alto, e um outro com um ninho no oco de uma árvore (mas que só vi depois na foto. Na hora só fotografei o que estava fora do ninho. Mas estavam longe e entre folhas).

Mais alguns metros, um lagarto e n o r m e esparramado sobre um tronco ensolarado. Brown-hooded Kingfisher, Barbet, Common Scimitarbill, White-Browed Robin-chat, Speckled Mousebird,. Duas horas rodando por Pafuri, mas poucas aves, infelizmente. Depois pensei que talvez fosse a época: na vez em que vimos muitos, já era novembro, uma ou duas semanas fazem muita diferença na quantidade de migrantes.

Eram umas 9h30, pensei em voltar pra Punda Maria quando vi um Lilac-breasted Roller pousado num tronco relativamente baixo. Estacionei perto, fui fotografar. Não. Eram dois Lilca-breasted Roller, e o tronco era a entrada do ninho deles. O sol tinha aparecido e já estava bem quente, então decidi tocaiar por lá. Fiquei mais de duas horas observando-os, tentando conseguir fotos boas do momento em que eles entravam ou saíam do ninho (levando insetos para os filhotes). Pude fazer experiências com f14, ISO alto. Pena que eu errei em ficar tão perto do ninho, deveria ter fotografado mais de longe para não ter problemas de profundidade de campo.

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Teria ficado mais, mas estava calor, e parecia errado ficar com o carro ligado para ter ar-condicionado, do lado de um ninho. Com as janelas abertas entravam insetos, e na terceira vez que tive que expulsar um marimbondo do carro, achei que era melhor ir embora do que correr o risco de levar uma ferroada.

Não esperava ver nada perto do meio-dia, mas vi algo que me impressionou muito. Todos os animais de chifre têm lutinhas. Muitas vezes são jovens machos treinando, mas não desta vez. Dois impalas adultos, cabeça contra cabeça, ponta dos chifres perto dos olhos do outro. Era uma briga difícil de assistir: muito tempo sem fazer nada, em que eles apenas ficavam se lambendo, andando um de frente para o outro. Então, de repente se atracavam por alguns segundos, e mais alguns minutos se lambendo (não um lambendo o outro, cada um se lambendo). Chegaram outros impalas para assistir, fazendo um som que me deu medo. Numa das lutas, um dos impalas rasga a cara do outro, e não para de pingar sangue. O impala machucado esfrega a cara contra a barriga, e logo a barriga está manchada de sague. A luta termina, eles se afastam, fico olhando para o impala machucando, pensando se ele vai pegar berne na ferida, se o sangue escorrendo vai atrair predadores, se ele vai ficar fraco e morrer.

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Impalas são dos bichos mais comuns no parque, geralmente bem desprezados. Raramente rendem fotos interessantes, no geral a gente nem para pra olhá-los. Mas depois desse momento, fiquei pensando que eles parecem bocós, mas na verdade têm lutas que podem resultar em morte. Passei a olhar pra eles com mais respeito.

Cansada, pensando de novo em voltar pra Punda. Fui dar uma última volta, vi uma cena bonita, dei ré. Um babuíno em meio às arvores, contra a luz, cuidando de um filhote. Babuínos são outro dos bichos desprezados por serem muito comuns, e é fácil cair na tentação de não olhar mais para bichos comuns. Fiquei orgulhosa de mim por conseguir me livrar (não o tempo todo) dessa armadilha mental e reconhecer uma cena que merecia ser fotografada.

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Uma última volta na Crook’s Corner, o local em que a África do Sul faz divisa com  Moçambique e o Zimbabwe. Chego justo no momento em que a tal African Fish-Eagle está alçando voo, nunca tinha visto-a em voo tão de perto, bem grande na câmera. Uma ótima despedida de Pafuri.

Finalmente peguei o caminho de volta pra Punda Maria. Muito cansada, só queria voltar pra casa. No caminho, um carro parado, que sai quando me aproximo. Rapinante pousado. Luz ruim. Não muito artístico. Mas me parece que era um jovem Jackal Buzzard. O adulto é bem bonito, o jovem bem sem graça.

Antes de voltar pra minha caverna em Punda, ainda dei uma voltinha pelos arredores e peguei fotos bonitas do Three-banded Plover, o plover mais comum da África do Sul. Mas é bem bonito, e consegui fotos dele de frente, andando na minha direção.

E fim das aventuras em Punda Maria e Pafuri.

Ah, faltou a explicação sobre a monstruosa águia malvada. À noite, vendo as fotos no notebook, entendi a situação (era o mais óbvio): era um casal de Tawny-Eagles. A fêmea, maior que o macho como sempre, mas parecendo maior ainda porque estava com as asas arqueadas, em pose de imposição. Ela não queria dividir a comida. Estava comendo filhotes, mas filhotes de alguma outra espécie.

Sexta-feira, 25 de outubro – Jonah in the whale, Noah in the ark

Sexta era dia de começar a voltar. Eu estava no extremo norte do parque, a 4h do meu voo local para Johanesburgo. Dava para viajar na manhã do sábado, mas tenho medo de imprevistos, perder voo, e preferi ficar num campo mais perto de Phalaborwa.

Despedi-me de Punda Maria e segui para Shingwedzi. Dia escuro, nada da especial até chegar na famosa S56. Perto do local onde vimos o leopardo na árvore bonita em 2007, havia umas duas Tawny Eagle. Posição difícil de fotografar. Dei ré, tentei, mas nada. Logo uma delas voou, e voltei a vê-la pousada mais à frente no topo de uma árvore com folhagem densa. Parei para fotografá-la e logo chega uma outra, menor, um macho. A sequência de fotos que consegui é uma novelinha sexual. As aves fazem poses que parecem representar sentimentos. Tem um momento em que a fêmea olha diretamente pra câmera, logo no início, e parece dizer “será que eu caio nesse papinho?”, uma outra em que o macho abre as asas, curva a cabeça, como quem diz “confie em mim, meus sentimentos são sinceros”. O coito, precedido de movimentos bem atrapalhados, e muito rápido. Parece que a ação termina com um movimento de asa irritado da fêmea. O macho vai embora, e a fêmea volta à atividade de limpar folhas e galhos, provavelmente preparando o local do ninho.

Ainda na S56, Violet-Backed Starling, mas foto ruim, e casal de White-fronted Bee-eater, um belo Burchell’s Coucal, Souther-Ground Hornbill. Chego em Shingwedzi, e descido seguir pela S50 em vez de pegar a H1-6.Um bom trecho da S50 segue ao lado de um rio. Garça-real-europeia, African Darter, cisticola, uma bela African Fish-Eagle ao lado de um tranquilo crocodilo.

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E outra cena triste da viagem: um grande hipopótamo adulto morto e inchado, boiando no rio. Primeiro reparei nos crocodilos: nadando. O mais comum é ver crocodilos imóveis. Andei mais um pouco e vi o cadáver, muitos crocodilos em volta. Só via a barriga e as patas esticadas, não conseguia ver a cabeça, se foi coisa de caçadores, não sei se seria possível ver os ferimentos de bala. Pelo menos nesse caso eu não tinha certeza se foram caçadores.

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Rodo mais alguns metros, mais uma cena inusitada: um impala albino. Nunca tinha visto um. Havia outros normais ao redor, pelo menos aquele não parecia ter sido expulso do bando.

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Continuei pela S50, e depois ela se transforma na S106. Vegetação pouco propícia para avistamentos, mas decidi continuar por ela. Abri os vidros, finalmente liguei a música em volume alto e me permiti curtir a viagem apenas olhando a paisagem, sem a atenção necessária para encontrar aves e outros bichos.

Foi logo depois de ter ouvido Accentuate the Positive, com a Ella Fitzgerald, eu lembro bem. Porque quando descobri que aquele barulho era mesmo de um pneu furado, os versos da música ainda ecoavam, e eu tentava focar neles “Jonah in the whale / Noah in the ark / What did they do, when everything seemed so dark”.

Sem sinal de celular. Nos parques é proibido sair do carro fora das áreas demarcadas, não só por causa de leões, mas também pelo risco de cobras, escorpiões, aranhas. Parei o carro e esperei um tempo. Era uma estrada sem bichos, e com poucos carros. Apareceu um carro, fiz sinal, ele parou, mas era um italiano que não sabia inglês, não sabia nem o que era flat tire. Mas ele me ajudou a mostrar no mapa que estávamos perto do entroncamento com a H1-6, a uns 5km, então decidi rodar até lá, mesmo que destruísse o pneu. Cheguei na estrada asfaltada, e ainda estava pensando se tentaria parar um carro na direção de Mopani ou de Letaba, quando um carro indo em direção a Letaba passou por mim, desacelerou, e voltou. Eu não tinha feito sinal pra ele, mas de alguma forma a motorista sentiu que eu precisava de ajuda. “Are you ok, ma’am?”. Expliquei o que tinha acontecido. Acho que era um casal de sul-africanos (um carro vermelho pequeno, não esses brancos de agências de aluguel), o moço disse que já ligaria para o campo para pedir ajuda, a moça falou para eu ficar dentro do carro e não me preocupar, que logo alguém viria ajudar. Em menos de 20 minutos o carro do parque chegou, e um funcionário vestido com aquelas roupas de soldado, perneira, trocou o pneu do carro.

Estávamos a 35km de Letaba. Cheguei lá sem outros incidentes, fiz o check in, me perdi um pouco pra achar o borracheiro, achei, mas ele olhou o pneu e me mostrou que estava destruído. Ele ia ligar para Hertz para eles me trazerem um novo pneu, mas eu expliquei que iria embora na manhã seguinte, então nem valia a pena.

Cheguei a andar alguns quilômetros nas estradas ao redor de Letaba, mas só nas de asfalto, e sem ir longe. Depois decidi que era melhor voltar pro campo.

A dois chalés do meu, a melhor árvore de Letaba: algo muito florido, cheio de besourinhos (infelizmente parece que só de um tipo) e várias aves interessadas no néctar. Finalmente consegui boas fotos do Violet-backed Starling, e também passaram por lá Red-winged Starling, Black-headed Oriole e, é claro, o African Paradise Flycatcher passou de relance só pra fazer meu coração acelerar e depois se partir.

E fim do dia.

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Sábado, 26. Últimas horas no Kruger, com capoeira de Vervets

“Mantenha-se longe de problemas”, era a frase que eu não conseguia esquecer e que guiava minhas decisões. Pensei que se eu aproveitasse minhas últimas horas no Kruger rodando pelas ótimas estradas ao redor de Letaba, e tivesse o azar de outro pneu furado – e sem um outro pra trocar, eu estaria sendo burra e procurando problemas. Então decidi fotografar a fauna do campo, e só sair de carro na hora que fosse parar ir embora. Seguiria apenas pela estrada principal, numa velocidade baixa, e com tempo de sobra.

Saí pra passear pelo campo. Poucas pessoas. A maioria já tinha saído, ou estavam saindo de carro. Luz suave da manhã filtrada pelas folhas de árvores altas. Lugar bonito, algumas aves como Dark-capped Bulbul, mas em cenário bonito, o onipresente Black-backed Puffback, African Green-Pigeon – sim, um estranho pombo verde, e então, os Vervets.

Primeiro reparei nas mães com filhotes. Mas havia outros. Sentei no chão, comecei a tirar umas fotos, e então o outro grupo começa a lutar. Não era uma briga, era claramente uma simulação de exercícios, um jogo. Parecia capoeira. Havia um adulto bem experiente, e um jovem, menor, ansioso por mostrar seu valor. Na maioria das situações, era um contra um. Tenho uma foto logo no começo, em que parece que eles estão se cumprimentando, um passando a palma da mão sobre a palma da mão do outro, como no Planeta dos Macacos. Talvez seja só ilusão da foto, mas é o que parece. E então começam as lutas, em alguns momentos lembra um ballet aéreo. O mestre executa passos e piruetas que deixam o jovem surpreso, sem ação. O mestre parece se divertir, sorrir. Num dos momentos, o aprendiz enfia o dedo na orelha do mestre, uma careta, mas parece que ele não leva a mal.

Eu sentei longe do grupo – não queria passar pelo mico de afugentar todo mundo, mas numa das fotos, parece que o mestre está olhando pra câmera.

Os filhotinhos de colo, com a pele da cara ainda clara, aquelas orelhas grandes tão humanas, se soltam das mães e querem brincar também.

E não bastava ser aquela sequência de imagens bonitas: o cenário era incrível. Às vezes pegava as placas e muretinhas do campo, em outras apenas as folhagens e o tronco de uma figueira enorme.

Eu teria passado o dia inteiro fotografando-os. Mas então, de repente um começou a correr para um dos lados, depois outro, mais outro, e logo todo o grupo tinha ido embora.

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Foi um dos momentos mais especiais da viagem. Cenas de comportamento são as minhas favoritas.

A viagem chegava ao fim, mas eu ainda teria alguns bons avistamentos e até lifers.

No lento caminho para Phalarborwa pela H9, ainda vi dois prováveis Larks, com boas fotos, mas que não consegui identificar a espécie, o Watled Starling em plumagem nupcial bem de perto, um plover longínquo, provavelmente o Kittlitz’s Plover – lifer, e minha primeira Whydah! Uma Shaft-tailed Whydah, macho, mas em plumagem de transição, ainda sem o rabão. Essas Whydahs são uma fofura. Lembram caboclinhos, mas com um rabão, imagine. O Long-tailed Widowbird tem 16cm, mais 40 cm de rabo. O Shaft-tailed são 12cm mais 22cm de rabo.

Na portaria de Phalaborwa, já fora do parque, quem cruza o meu caminho rebolando? African Paradise Flycatcher, é claro. Cheguei a estacionar e descer do carro, mas ele pousou na árvore só por alguns segundos e depois sumiu.

Acabou? Não. Já tinha devolvido o carro (e preenchido o formulário de acidente, explicando o que aconteceu com o pneu), despachado a bagagem, ainda faltava uma hora para o embarque. O aeroporto de Phalaborwa é bem pequeno, e rodeado de árvores. Fui dar uma volta para passar o tempo e encontro uma figueira cheia de frutas. E onde tem frutas maduras tem aves. Tirei a câmera da mochila, consegui boas fotos de Red-faced Mousebird, Speckled Mousebird, e alguns registros de Black-collared Barbet, Violet-backed Starling, e mais um pequeno que ainda não identifiquei.

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A África do Sul é um destino muito especial para nós, e entendo bem os fantasmas do Kruger, pra quem os vivos mandam fazer plaquinhas como esta, pregada num banco da área de piquenique de Pafuri “Timothy Moore Richards (1956 – 2010) – In Christ there are no goodbyes. The times we spent here, the memories we made, the photographs we took may all fade away but your spirit is here to stay. If home is where the heart is, then this was your place. The place you loved and where you rest, the place from where you rest, the place from where you wait and watch each day for those you love to return home to stay”.

Não acho mórbido. Na verdade, é um sentimento bem reconfortante a ideia de que depois da morte tem o Kruger. Passei um tempo sentada no banquinho do Timothy, apreciando as águas do rio raso que corre em frente e algumas aves que passaram por lá.

O Brasil é um país muito querido e com belezas sem tamanho. Mas a quantidade de coisas erradas aqui desanima muito. A postura do governo perante os assuntos de preservação da natureza. A postura e as atitudes dos funcionários públicos de parques que tratam fotógrafos de natureza como salafrários ou bandidos. O fato de não haver um parque do porte do Kruger, relativamente protegido e preservado, com uma política voltada à consciência ambiental.

O Kruger ou o Kgalgadi tem uma fração da diversidade de espécies do Brasil, mas é um lugar para esquecer que existe tanta coisa errada no mundo, uma terra da fantasia em que (fora uns pedaços do sul do Kruger) todos são gentis e estão lá para admirar a natureza, tirar fotos, fazer churrasco e rir até às 21h, e a partir das 21h tem aquele silêncio porque todos respeitam quem dorme cedo para acordar às 5h. Não tenho vergonha de dizer que os parques da África do Sul têm um lugar especial no meu coração, e que ser fantasma no Kruger parece um ótimo destino.

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