Por enquanto, nada menos cool do que ser birdwatcher
- Texto: só Claudia (Cristian e Daniel não têm culpa)
- Fotos diversas dos nossos passeios. Como os comentários sobre a aparência dos birdwatchers não são os mais elogiosos, busquei colocar só fotos nossas, ou em que as outras pessoas não aparecem em destaque.
Temos uma impressão geral e palavras que podemos associar a cada tribo – surfistas, motoqueiros, corredores, velejadores, mergulhadores, marombeiros, vegetarianos, foods, jogadores de poker, evangélicos, músicos, ciclistas. E se eu disser “birdwatchers”? Que imagens e palavras estão associadas aos birdwatchers, e será verdade que ser birdwatcher é uma das coisas menos cool que existem?
Bom, pra começar – de onde eu tirei “nada menos cool do que ser birdwatcher”. É uma ideia de Jonathan Franzen, romancista norte-americano que ganhou notoriedade mundial ao ser capa da Times em 2010 – após a Times passar 10 anos sem ter nenhum escritor como capa.
Franzen, além de ser amado e odiado ( “um dos melhores escritores da atualidade” “um dos caras mais chatos da face da Terra”), é também um birdwatcher que expõe seus pensamentos sobre a atividade. Ele conta que tentou não ser birdwatcher, e que tinha vergonha de levantar um binóculo no meio da rua em Nova York. Mas por fim, se rendeu. Entregou-se à atividade, viaja pelo mundo para passarinhar, voltou a escrever reportagens – por se interessar pelos temas ambientais. Dizem até, que quando esteve na FLIP de 2012, o único momento em que falou com empolgação foi quando a mediadora puxou assunto sobre as aves brasileiras.
Por que não é cool ser birdwatcher? Franzen já responde parte da questão no mesmo parágrafo em que afirma:
“… É uma longa história, mas, basicamente apaixonei-me pelos pássaros (sic. Deveria ser ‘apaixonei-me pelas aves’). Isso não ocorreu sem uma resistência considerável, pois não há nada menos cool do que ser observador de pássaros, e qualquer indício que revela uma paixão verdadeira não é, por definição, cool. Mas, aos poucos, mesmo relutando, fomentei essa paixão e, se metade da paixão é obsessão, a outra metade é amor.
Como Ficar Sozinho – em português pela Companhia das Letras, 2012
Qualquer indício que revela uma paixão verdadeira não é, por definição, cool. Algo muito verdadeiro. Uma paixão verdadeira faz as pessoas perderem a noção do recato, do bom senso, da elegância – muda nossos parâmetros em diversos campos. Manifestações de paixão verdadeira também incomodam de forma geral, em especial as pessoas cultas-inteligentes-refinadas – é bem mais cool posar de blasé. Não sei se foi isso que Franzen pensou quando escreveu, mas é como interpreto a afirmação sobre o antagonismo entre paixão verdadeira e ser cool.
Só para não pairar dúvidas sobre essa história de ser cool ou não ser cool, com exemplos tirados de um artigo que o próprio Franzen escreveu para o The Guardian agora em setembro: França e Itália são cool. Se você diz que vai para um desses países, ninguém te pergunta “o que você vai fazer lá”. Mas diga “Alemanha”, e a pergunta vem – pelo menos entre norte-americanos, mas acho que no Brasil também aconteceria. Outro exemplo: ter Mac ou qualquer coisa da Apple já te torna cool, só por possuir o objeto. Ter PC não é cool.
http://www.theguardian.com/books/2013/sep/13/jonathan-franzen-wrong-modern-world
Claro, há outros motivos para o birdwatching não ser cool. Vou começar por um dos mais fúteis – mas que não deixa de ter um grande peso na questão: a aparência dos birdwatchers. Nos Estados Unidos a cada cinco anos é feita uma pesquisa para traçar o perfil dos interessados em atividades relacionadas com a natureza. A pesquisa de 2011 – divulgada em 2013, entrevistou mais de 20 mil norte-americanos residentes. A partir desses dados concluiu-se que 90 milhões de norte-americanos praticam alguma atividade de observação de vida selvagem, caça ou pesca. Desses 90 milhões, 71 milhões praticam a atividade de observar, tentar identificar, ou alimentar fauna selvagem. E claro, o bicho mais popular são as aves – o foco de 46,7 milhões.
Num resumo superficial, podemos dizer que nos Estados Unidos homens e mulheres participam na mesma proporção – na verdade há um pouco mais de mulheres, a faixa etária geral é de mais de 50 anos, brancos, escolaridade e renda altas. A faixa etária em que a atividade é mais popular é entre as pessoas com mais de 65 anos. Se você tiver 10 norte-americanos com mais de 65 anos, 5 serão birdwatchers. Na faixa dos 18 aos 24 anos, apenas 1.
A pesquisa integral pode ser lida aqui: http://www.census.gov/prod/2012pubs/fhw11-nat.pdf, e mereceria um post só pra ela. Pincei alguns números apenas para apoiar minha hipótese de por que o birdwatching não tem uma imagem cool.
Que fique claro: não tenho nada contra a melhor idade e velhinhos, muito pelo contrário. Tive uma convivência maravilhosa com meus avós, e sei que há muitos sessentões bastante cool, que fazem musculação, se cuidam, usam roupas modernas, estão sempre antenados – mas eles são a maioria ou a exceção? Os velhinhos têm todo o direito de não serem cool, eles já fizeram muitas coisas na vida, não precisam além de tudo ainda serem garotos propaganda.
Esta é a imagem geral de um birdwatching gringo: calça comprida com meias por cima da calça, camisa de manga longa abotoada até o pescoço e nos punhos, cores discretas – sonsas, chapéu, branquelos, mais de 60 anos, binóculo. Sensação de que a pessoa é totalmente fissurada em apenas um assunto. Quem pode culpar qualquer um de lutar pra não ser birdwatcher?
Certo. E no Brasil? Não temos, e talvez nunca tenhamos pesquisa com 20 mil entrevistados. Mas posso falar das minhas impressões gerais, com a propriedade de quem é birdwatcher há 4 anos, fez dezenas de passeios, viu 780 espécies de aves brasileiras – mais de mil contando outros países, participou de encontros, tem Facebook com centenas de colegas birdwatchers, gerencia um site voltado à divulgação do birdwatching.
O Brasil é um caldo. Há uns 3 anos poderíamos dizer que era atividade principalmente de homens com menos de 30 anos, em pique de esporte de aventura. Mas acho que isso acontecia especialmente por falta de divulgação. Com o Wikiaves, o Facebook, blogs, programas de televisão, reportagens – e uma pequena participação do Virtude-AG, todos os dias mais pessoas descobrem que passarinhar é possível, para qualquer um.
No birdwatching brasileiro temos pessoas de todos os tipos. Ser homem com menos de 30 anos, sem filhos, facilita bastante viajar pra lá e pra cá para passarinhar. Mas temos aposentados, homens e mulheres, que além do tempo têm dinheiro. Também vemos aparecer lentamente um grupo que é a definição clássica de birdwatcher: as pessoas que apreciam e alimentam as aves em seus jardins ou nos arredores de casa, que gostam de observá-las e não necessariamente são loucas por fotografia. Muita gente mantém comedouros há anos, mas agora a internet, as redes sociais e as câmeras digitais facilitam a ação que as caracteriza como birdwatchers: tentar identificar que espécie de ave é aquela. É algo que os gringos faziam antes da internet porque têm o birdwatching no sangue: influência da colonização inglesa (o hobby surgiu na Inglaterra no século XIX), guias de campo, clubes de observadores. Nos Estados Unidos, 88% dos 46,7 milhões são birdwatchers de jardim ou de parque perto de casa, e apenas 38% viajam para passarinhar – veja que há sobreposição dos grupos.
Ainda que viajar para diversos lugares não seja o princípio básico do birdwatching, dentro da realidade brasileira é a única forma cool de ser birdwatcher. As pessoas – geralmente mulheres – que alimentam seus comedouros religiosamente, nunca falham com as aves, não gozam do mesmo status dos – geralmente homens – que viajam para a Amazônia, têm câmeras possantes, usam roupas camufladas, playback, e voltam com registros e espécies raras, algumas vezes até inéditas para o Wikiaves.
Não somos tão bitolados como os gringos, mas somos razoavelmente bitolados e fissurados pela tal Life List – a lista das aves que você já viu, em especial das espécies que ocorrem no Brasil. Por quê? Porque existe ranking, ora bolas. Não é um ranking como existe pra gringos, em que, além da lista absoluta, há listas parciais: anuais, sazonais, regionais e até listas das aves que você viu na tv. Mas o Wikiaves mantém uma lista das aves que você postou no site e atualmente essa é principal forma de competir.
Não é o momento de se aprofundar no tema da competição. Só queria dizer que não temos uma imagem geral consistente – e não muito marketeira, como os gringos têm, do que é ser birdwatcher. No Brasil tem crianças, adolescentes, moçada, adultos e velhinhos de todos os tipos, tamanhos, cores e sabores.
Faixa social? Alguns dizem que é atividade de quem tem dinheiro, mas eu vejo de tudo. Sei de pessoas com câmeras de R$ 300, que praticam a atividade nos arredores da casa ou combinam com colegas e racham viagens. É claro que quanto mais a pessoa se envolve, mais ela investe em tempo, dedicação, equipamento. Observar e fotografar aves desperta paixões verdadeiras, e nas paixões verdadeiras a gente é capaz de se desdobrar.
Esteticamente não formamos um conjunto muito marketeiro. Por exemplo: surfistas, ciclistas, corredores, mergulhadores – esses são cool. Mas nós? No geral não somos sarados, não temos direito às cores lindas e o design elegante de roupas de frio do trekking, não temos estilistas pensando em como nos deixar mais bonitos e dignos – como tantas outras práticas têm. Pra passarinhar no quintal, será com uma roupa comum. Mas quando viajamos para passarinhar, se você é uma pessoa com um mínimo de experiência de campo, há dois estilos básicos: tipo Rambo ou tipo gringo. Por que não usamos calça jeans e camiseta, roupa de gente normal? Pra um passeio no parque da cidade, pode ser. Mas não para uma viagem de uma semana. Andamos em trilhas, às vezes estreitas, às vezes com lama, troncos caídos, situações em que o certo é sentar ou até deitar no chão para conseguir ângulo pra foto, pode ser um calor infernal ou muito frio. Eu sou tipo gringo. Acho bonito as roupas tipo Rambo, mas até hoje não encontrei tecidos bons como dos gringos, então entre o conforto e a beleza…
E não basta o suplício das roupas: é um país tropical. Será muito comum nos encontrar suados, descabelados, calça suja de terra, empapados de protetor solar e repelente, ou queimados de sol ou de vento, ombro, pescoço, joelhos doloridos, mordidos por pernilongos, carrapatos e coisas piores. Nas paixões verdadeiras, perde-se o senso de recato e elegância.
Além da imagem pouco comercial, somos nerds. Quando a gente abre a boca, é pra falar de aves. Isso se abrirmos a boca. Se você topar com um grupo de birdwatchers numa trilha, a situação pode ser de silêncio total – não porque não temos assunto, aves é um assunto sem fim, mas porque estamos atentos aos sons.
Tá, podemos posar de normais e tentar ter conversas civilizadas. Desde que não haja aves por perto. Michael Kepp, jornalista norte-americano morando há 30 anos no Brasil, outro que relutantemente entrou pro birdwatching, conta que sua aversão aos birdwatchers começou numa pousada no Mato Grosso: um birdwatcher puxou conversa com ele, mas aí passou um tucano e o homem pulou da cadeira e saiu correndo sem falar tchau. Uma outra pessoa do grupo de birdwatchers explicou a Kepp “Quando observadores de aves conversam, estão apenas matando tempo até aparecer outro pássaro”.
Kepp achou bastante indelicado, e não tinha uma boa imagem de birdwatchers, até que numa viagem pra Amazônia também acabou se rendendo aos emplumadinhos.
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michaelkepp/1214627-para-observar-nao-basta-olhar.shtml
Somos fissurados por aves, num nível de paixão tão verdadeira que largaremos qualquer coisa ou qualquer um por um rabo de penas que nos interesse. Na esfera de momentos, lifers (lifer é uma espécie inédita, que ainda não consta na sua Life List) certamente causarão uma reação indelicada dessas, mas qualquer ave de rapina menos comum, ou qualquer coloridinha menos carne-de-vaca também farão o serviço. Na esfera de planejamento, estamos sempre aproveitando brechas no tempo com a família, trabalho, amigos, às vezes dilatando-as, em busca das aves.
Viajamos sozinhos ou com os colegas quando conseguimos o aval familiar. Mesmo quando viajamos com a família, aproveitamos para dar uma escapadinha de manhã – um passeio das 6h às 9h30, e voltamos a tempo de tomar o café da manhã com todos. Independente da situação, nosso olhar está sempre em busca das aves, é um condicionamento irreversível. Não nos tome por loucos pelo olhar perdido – não é perdido, é de quem escaneia a paisagem. E se sairmos correndo sem falar tchau, você já sabe o que aconteceu.
Uma vez tentei sair do carro sem tirar o cinto, no desespero de sair rápido antes que o gavião-de-rabo-branco subisse muito. É um dos gaviões mais comuns do Brasil, mas eu não tinha nenhuma foto boa dele. Neste ano, em julho, perdi o aniversário do meu pai e da minha irmã porque estava passarinhando, e no fim de semana da volta, em vez de ir visitar um dos dois, pedi perdão e engatei outro passeio passarinheiro porque surgiu essa oportunidade.
Na semana passada vi algo que devia ser um gavião-miúdo voando na frente do meu prédio – eu tinha acabado de sentar para almoçar, mas larguei tudo e saí correndo para pegar minha câmera. Fui pra varanda, nada. Esperei uns 10 minutos – de repente ele volta a aparecer. Só depois de fotografar descobri que meu pulso estava doendo. Devo ter torcido de algum jeito quando me levantei de supetão, mas com a adrenalina nem senti.
Nunca me senti ofendida pelas pessoas me falarem “ah, que interessante” quando o Cris contava para algum amigo que eu sou observadora de aves. Não culpo ninguém por sermos muito menos cool do que a Alemanha.
Nos dias de hoje, no Brasil, é bem provável que haja poucas imagens e palavras associadas a birdwatchers, talvez no máximo “é o pessoal que gosta de ir pro mato fotografar passarinho”. Quando ficarmos um pouco mais conhecidos, talvez a gente não seja o tipo de birdwatcher que deixou Michael Kepp mal impressionado. Na maioria dos passeios, vejo os colegas agindo de forma simpática com desconhecidos e curiosos. Acho que ainda sairíamos correndo atrás do lifer ou da ave diferente – mas no mínimo haveria uma preocupação em depois voltar e se desculpar com o interlocutor, se possível.
Que palavras eu gostaria de ver associadas a birdwatchers brasileiros? Há muitas tendências em curso, mas o que eu gostaria de ver prevalecer é o amor à natureza. “Ah, observador de ave. Sei. Esse pessoal que adora os pássaros, e gosta de mostrar quanto bicho bonito tem em todos os lugares”.
Cheguei a escrever “lutar pela natureza”, mas sei que esse é um passo bem grande. Por enquanto, se formos uma tribo conhecida por evidenciar as belezas da natureza, seja por meio de fotos, ou dos comedouros que mantemos e que deixam as belezinhas à mostra, já ficarei bem contente. Acredite ou não, nem a ideia de apoiar a divulgação é um consenso. Muitos observadores de aves não concordam que deveríamos ter um sentimento de obrigação moral em divulgar a natureza brasileira. Mas esse também é assunto pra outro post.
Minha conclusão é que por enquanto, realmente nada menos cool do que ser birdwatcher. Mas sou otimista (e levemente megalomaníaca), e quem sabe um dia os birdwatchers brasileiros mostrarão – por meio de suas belas fotos e por sua dedicação em manter comedouros, divulgar e defender a natureza brasileira – que ser birdwatcher é uma das coisas mais cool que alguém pode ser.
Mais informações e trechos de Jonathan Franzen:
Artigo da Folha de S.Paulo:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/50597-a-liberdade-vigiada-de-jonathan-franzen.shtml
Jonathan Franzen tem dois vícios claros. O primeiro é o hobby que descobriu há alguns anos: a observação de aves. “Estava caminhando no Central Park com minha irmã e o marido dela, e eu, que andava por ali havia dez anos, já tinha visto uns três tipos de pássaro. E, naquele dia, meu cunhado ornitólogo me mostrou umas 50 espécies diferentes.”
“Eu achava que conhecia o mundo. E eis que surge uma nova dimensão da qual eu não tinha ideia. Foi uma revelação, foi como um adolescente que, de repente, descobre o sexo.”
Logo se tornou uma paixão. Em sua passagem pela Flip, em julho, o norte-americano pretende esticar por “uma semana ou nove dias no Pantanal e no sul da Bahia, observando pássaros”.
Trechos do livro Como ficar Sozinho
(…)
meu amor pelos pássaros se tornou um portal para uma parte importante e menos autocentrada em mim, que eu nem sabia existir. Em vez de continuar viajando por aí como cidadão do mundo, curtindo algumas coisas, descurtindo outras e guardando envolvimentos para o futuro, fui obrigado a confrontar uma parte de mim que eu tinha de aceitar na íntegra ou rejeitar absolutamente. É isso que o amor faz com uma pessoa.
(…)
Quando ficamos trancados em nossos quartos, bufando, caçoando ou nos sentido indiferentes, como fiz durante tantos anos, o mundo e seus problemas parecem desafios impossíveis. Mas quando saímos às ruas e temos relacionamentos reais com seres reais, ou mesmo animais reais, há o perigo bastante real de amarmos alguns deles. E quem saberá dizer que rumo a vida tomará?” [2011]
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