Dois dias e meio na Mata Atlântica, com boa companhia e um guia que é um ente da floresta
- Texto e fotos: Claudia
- Passeio na companhia do grande Rodrigo Koci Popiel. Rafael Fortes (Rafael Sortes, míssil teleguiado, ente florestal) como guia. Contato do Rafa: fortestrips@gmail.com
- Equipamento: Nikon D800 e Nikkor 300 f4 com tele de 1.4. Em geral uso a Sigma 50-500 6.3, mas neste caso tinha levado as duas lentes, e na primeira foto que o Rodrigo cravou e eu não, troquei de lente. O Rodrigo também tem uma D800, e usou com a 300 f4 sem tele. Decidi ter 420mm em vez de 300mm, ao preço de mais lerdeza pra focar. Nós também estávamos com tripés – a 300 f4 da Nikon não é estabilizada, mas frequentemente tirávamos do tripé para ter mais agilidade no enquadramento.
De volta à Ubatuba. Onde comecei a passarinhar quando nem existia Wikiaves, quando ainda não era vício. A Ubatuba de ficar no Rancho do Pica-Pau, carregando nosso azeite e frigideira, porque o chalé tinha cozinha, então íamos ao mercado comprar camarões e lulas, colocávamos a mesinha pra fora e comíamos com vista para as árvores de Mata Atlântica boa. Ubatuba da Folha Seca, do quintal do querido Jonas, da foto do topetinho-verde em dança de acasalamento, dos encontros com o anambezinho e o gavião-pega-macaco. Ubatuba do Carlos Rizzo, Rick Simpson, Dimitri Matozko.
Não ia pra Ubatuba há 4 anos, mas voltei em grande estilo: com o privilégio da companhia do Rodrigo Popiel, e tendo como guia o Rafael Fortes, um dos melhores guias do Brasil, muita gente acha que ele é o melhor, e há diversas razões para isso :o)
Fizemos o passeio daquele jeito que o Cris acha o fim da picada: acordei às 3h, pra estar em Santana às 4h no prédio do Rodrigo, pegamos o Rafa em Taubaté às 5h30 e umas 7h e pouco estávamos na Angelim – um dos principais destinos passarinheiros em Ubatuba. Uma antiga fazenda de cacau, que permite visitação de birdwatchers, a uma taxinha de R$ 10 por pessoa.
Começo de dia com os bichos ainda tímidos. Choca-de-peito-pintado sem mole, pintadinho no escuro, borralhara como um borrão como é o comum. Um pica-pau-bufador longe, mas bonito e no sol. Várias rendeiras, uma delas até posou ao lado de uma linda bromélia com flor amarela, Rodrigo conseguiu fotografar. Casal de joão-botina-da-mata cantando em dueto, lindos mas embrenhados. Um deles saiu no limpo e deu chance pra foto. E um ótimo encontro com uma ave que eu nunca tinha fotografado, o bico-assovelado. Um bichinho encapetado com um bico proporcional ao grau de ser irrequieto. Trovoada se alimentando, casal de ferro-velho se alimentando.
Chegamos naquela área de árvores, perto do caseiro. O Rafa tinha ouvido, e de repente viu: o famoso anambezinho, Iodopleura pipra, uma das atrações de Ubatuba. Uma fofurinha de 9cm, com o condenável costume de ficar no alto das árvores – mas que já vi no baixo pelo menos 3 vezes, e desta vez também foi assim. Rafa tocou o playback, o bichinho foi descendo, descendo, e chegou a uma altura bem razoável considerando o seu costume de ficar nas copas.
Felizes de ver essa ave tão bem. O Rafa nos contou de uma vez em que guiava um grupo de suecos, e o anambezinho também desceu. Ele estava lá, olhando com o binóculo, encantado de observar o bichinho de perto. De repente olhou pra trás, o grupo todo estava parado de braços cruzados olhando feio pra ele, porque consideravam que já tinham “ticado” o anambezinho da lista, e era hora de procurar outras aves. Sim, meus amigos… a postura de se importar mais com números do que com os momentos faz parte do cerne do birdwatching típico – mas aqui no Brasil muita gente não pensa assim :o)
Tiê-galo, tangarazinho fêmea, belo encontro com o zidedê – primeira vez que vejo o bicho de perto! Das outras vezes minhas fotos ficaram tão ruins e de longe que posso considerar este registro lifer fotográfico. Limpa-folha-ocráceo de perto e no limpo, papa-mosca-cinzento, arapaçu-liso (outro lifer), saíra-ferrugem que desceu numa moita na nossa frente, atraída pela caixinha mágica do Rafa. Canário-da-terra-verdadeiro, caneleiro-bordado também baixo, não-pode-parar, meu melhor encontro e fotos da mariquita. Eu tinha falado pro Rafa “queria tanto ter foto desse bichinho no baixo e no limpo”, ele fez “plim” com o playback, e o bichinho desceu na nossa frente.
Pra quem não conhece, o playback é a gravação da voz da ave. Quando você toca, em algumas situações a ave se aproxima, achando que é um rival. Às vezes vem, às vezes não vem. Com o Rafa funciona a maioria das vezes, e acho que não é só porque ele tem boas gravações, acho que é porque ele tem essa energia zen. Como falei pra ele, o Rafa é uma força espiritual.
Na saída ainda vimos um benedito-de-testa-amarela.
Almoçamos no centro de Ubatuba, no 100 Miséria, restaurante por quilo, e depois fomos pra Folha Seca, no quintal do queridíssimo Jonas.
Esse Jonas é outra força espiritual. Um homem que mantém há anos bebedouros e comedouros no quintal da casa, e permite que as pessoas visitem e fotografem, sem cobrar nada. O lugar é um paraíso: tanto beija-flor voando sem medo ao seu redor, tantas espécies, tantos thraupideos nas bananas… como disse o Rodrigo “é muita informação, espera que não consegui processar ainda”.
Nesse pedacinho do céu tirei uma foto do topetinho-verde em dança de acasalamento. Como foto é ruim, mas por muitos anos não vi outro registro desse momento – aparecem fotos do bicho se espreguiçando e com as penas eriçadas, mas não em dança nupcial. Recentemente Luciano Breves, de Morretes – PR, postou uma foto de dança nupcial. Em 2009, minha foto foi considerada rara o suficiente pra ganhar o 2º lugar de melhor registro no concurso do Avistar:
O Jonas é um gentleman, muito gentil e acolhedor. Apesar de aproveitarmos tanto o quintal dele, ele nunca aceita dinheiro, mas descobri que podemos levar açúcar e bananas, então das últimas vezes que fui, sempre levo. (ou seja, se for lá, leve também, é o mínimo que podemos fazer). Eu não ia lá há 4 anos, mas me tratou como se tivesse me visto no dia anterior.
Logo que chegamos o balança-rabo-de-bico-torto apareceu nos bebedouros. Eu tinha descido ainda sem a câmera – porque seria uma grande falta de educação sair fotografando em vez de ir conversar com o dono da casa. O bichinho não voltou a aparecer, mas não tem problema.
Estávamos papeando, contei da minha apresentação no Avistar, dos momentos em que me pergunto se sou mesmo uma observadora de aves, falávamos dos tipos de birdwatchers. De repente olhamos pra cima, e vimos um casal de rapinantes brancos. Rafa olhou com o binóculo, eu com a câmera (nesse momento eu já tinha ido pegar a câmera), e tivemos o imenso prazer de identificar um casal de gaviões-pato. Voavam juntos, um ballet aéreo de movimentos lentos, às vezes quase sobreposição do macho. A fêmea é 30% maior, e o Marcelo Barreiros tinha me descrito essa dança nupcial, em que o macho desaparece em cima da fêmea.
Voavam alto e cada vez mais alto, então as fotos não ficaram grande coisa. Mas registrei o máximo que pude, e estava muito emocionada de ter a honra de presenciar essa cena. Nunca pensei que veria uma dança nupcial de gaviões-pato e, assim como a dança do topetinho-verde, o momento especial foi no quintal do Jonas.
Fomos dar uma volta na estrada de terra-lama. Ótimas fotos do cuspidor-de-máscara negra e do vira-folha-de-peito-vermelho. Pintadinho, tiê-do-mato-grosso, choquinha-de-peito-pintado, rendeira, barranqueiro-de-olho-branco também estavam por lá, mas sem muita chance de foto.
Voltamos para o quintal do Jonas, esperamos anoitecer e o Rafa chamou a corujinha-sapo. O bicho até apareceu, cruzou a estrada duas vezes, mas nada de pousar em local que fosse possível fotografar. Nos despedimos do Jonas, fomos em direção à Tabatinga – ficaríamos no apartamento da família do Rodrigo, paramos num posto pra comer um lanche e antes das 21h já estávamos dormindo.
No dia seguinte saímos 5h20 em direção ao bairro Mambucaba, em Angra dos Reis. Fica a 120km de Ubatuba (1h50), mas a 150km de onde estávamos (deu umas 2h20). Iríamos em busca do formigueiro-de-cabeça-negra, espécie endêmica e ameaçada de extinção.
O bairro de Mambucaba faz parte de Angra, mas fica bem antes da cidade. Aparece no Google Maps. A estrada onde passarinhamos exatamente, eu não saberia explicar. O Rafa foi dando as coordenadas de onde virar, e de repente estávamos numa estrada de terra com uma pequena área de entulho, urubus, várias charretes que passavam carregando areia, provavelmente de extração ilegal. Mas tantas aves.
A choca-listrada logo respondeu, e conseguimos boas fotos. O formigueiro demorou, mas também respondeu, em mais de um ponto. É daqueles bichinhos inquietos, que fica na brenha, e em alguns poucos momentos aparece no limpo e no aberto. Uma grande honra poder observar esse bichinho.
Na estrada também vimos marianinha, ótimas fotos do acauã, que cruzou a estrada atraído pelo playback do Rafa, guaracavuçu (mais um lifer pra mim), saíra-de-papo-preto (lifer pra Angra! Quando falei pro Rafa que estava vendo uma saíra-de-papo-preto ele falou “de papo-preto? Não é a de chapéu-preto?”, mostrei pra ele na câmera, e depois vendo a lista da cidade entendi porque ele achou que eu estava confundido o nome), chocão-carijó, vite-vite, picapauzinho-de-testa-pintada (achado pelo Rodrigo), garrinchão-de-barriga-vermelha, papa-moscas-estrela, choquinha-cinzenta, tangará, zidedê e calcinha-branca (lifer também). Esses nomes populares rendem boas piadas.
Almoçamos num restaurante por quilo em Paraty e, de volta à Ubatuba, fomos dar uma olhada em Picinguaba. Nada na praia, mas no caminho boas fotos do saci e do carretão.
Quarta-feira seria nosso último dia, faríamos só a parte da manhã. Decidimos ir pra estrada da Folha Seca, mas a mata estava muito silenciosa. Passamos um tempo tentando atrair o interesse do entufado, veio o casal, mas sem oportunidades para boas fotos. Decidimos voltar pra Angelim. Chegamos já eram 10h, a mata também estava quieta, mas ganhamos um grande prêmio: desta vez o tapaculo-pintado respondeu ao playback e se aproximou. Ficou um bom tempo saltando na brenha na nossa frente – em um momento até saiu no limpo, o Rodrigo conseguiu uma linda foto (eu estava com o tripé, já sem forças pra segurar a câmera na mão, e não tive agilidade para me mover e pegar o momento no limpo). Piolhinho-chiador também deu boas fotos, e a galinha-do-mato só deu baile. Essa era uma das aves que o Rodrigo mais queria ver, mas infelizmente ela não empoleirou o suficiente pra dar foto, e estava muito escuro. Mas não tem problema. Concordamos com a ideia de que uma das graças dos bichos difíceis é serem difíceis. Tapaculo-pintado, borralhara, galinha-do-mato… se dessem mole, não seria a mesma coisa :o)
Encerramos o passeio. Almoçamos na estrada, no Flor de Manacá, lugar simpático com boa comida caseira. Rodrigo deixou o Rafa em Taubaté, eu fiquei no Leite na Pista, onde pegaria carona com o pai do Rodrigo (que ia de Campos do Jordão pra São Paulo), o Rodrigo foi pra Campos cuidar de planos pro futuro.
Uma excelente passarinhada, tanto pelos resultados em fotos, mas principalmente pelos bons momentos na companhia de pessoas muito gentis e queridas. Obrigada Rodrigo, Rafa e Jonas! Pena que a Juliana Diniz e o Luccas longo não puderam participar, fica para um próximo passeio.
Mais relatos de viagens e passeios